FIAT LUX

Diz a Bíblia, no Gênesis, que no princípio tudo era trevas, até que Deus bradasse “Faça-se a luz” – e a luz se fez. Não pôde depois a ciência discordar da mitologia judaico-cristã, do relato associado a Moisés e à compilação dos textos do Pentateuco da época de Salomão (cerca de 1000 a.C.); afinal, o que mais seria o famoso Big Bang senão uma imensa explosão de luz fenomenal, que se expandiu para o impensável espaço infinito? Há que se reconhecer a verdade nesse ponto – não é sempre que fé e ciência conduzem ao mesmo lugar.

Torna-se deveras difícil buscar uma resposta razoável para a criação do nosso infinito, da origem última de todas as coisas. A mera busca nos deixa temerariamente próximos da tênue linha que separa conhecimento de insanidade. Ao raciocínio humano, é aventura imponderável aproximar-se assim do incompreensível; derradeiro trecho do penhasco, a contemplar o abismo que se abre diante de nós – e ao nada além. Seremos acaso capazes de lançar-nos conscientemente na escuridão? Teremos audácia o bastante para esse pequeno passo? À certeza reconfortante da fé dogmática, cuja razão irracional define-se pela crença, sobrepõe-se a dúvida racional da investigação científica, no limiar de irracionalidade de seus frágeis postulados. Desejo de compreensão ou vaidade intelectual?

Terá o homem consciência de sua condição infinitesimal diante do que o universo representa? Terá a ciência o discernimento para compreender o quão absurdo é transcender os limites do próprio pensamento? Terá a fé (ainda) a pretensão de impor seus dogmas como verdades? Não se trata de tentar lançar algo de luz na escuridão, mas de atirar-se ao abismo do incoercível. O cientista ou filósofo que ancora a gênese de suas ideias nessa famosa metáfora de explosão luminosa, apelando exclusivamente à sua razão, chega enfim à questão inescapável: e de onde veio o Big Bang? Qual a origem da origem? O alienista de Machado de Assis acabou por concluir ser ele mesmo o alienado…

Ultrapassar a fronteira de nossa própria fragilidade intelectual é um tipo requintado de autoflagelação. O pensamento nos torna humanos, mas por vezes nos condena ao retorno à mera condição de seres. Reconhecer os limites do intelecto, das certezas de fé e das teorias científicas, não nos apequena diante do universo; pelo contrário, presta um justo tributo à humildade de nossa insignificância. No mito bíblico, a Árvore do Conhecimento interditada a Adão e Eva era o limite do cognoscível; seria esse mais um ponto em que fé e ciência concordarão no futuro?

Jaime de Campos

novembro de 2023

heterônimo de Leandro Ciccone

março de 1997

CORTESANIAS #1 – MORALIDADES

Amante entra-me casa adentro com arroubos homicidas. Aos gritos, assusta-me a criada, que foge para a cozinha. Ouço a barulheira do boudoir, e desço as escadas já irritada, encontrando-o na saleta, indo de um lado a outro em frente ao piano.
_ Veja que assim me gastas o tapete, homem! Que te amofina?
Rosto vermelho, expressão descomposta, ele responde ainda aos gritos:
_ Um pulha corteja-me a mulher às minhas vistas!
_ E gritas assim para que meus vizinhos o saibam?
Ao ouvir isso, estacou enfim, pondo os cabelos em desordem com as mãos agitadas, enquanto repetia, mais baixo, vários “pulhas” e “calhordas”.
_ Mas por que o permites? – perguntei quando vi que se acalmara um tanto.
_ Devo-lhe até o último ceitil – ele retrucou agoniado, sentando-se – Tenho com o canalha promissórias que não poderia pagar nem por milagre…
_ Oras, dívidas se pagam dum jeito, ora doutro; eu mesma pago assim meus débitos…
_ Mas tu és… – ele principiou agastado, mas logo se calou, enquanto eu me ria de seus pudores.
_ Ela também, meu caro, creias-me; só temos contratos diferentes; o dela celebrado em cartório, o meu na alcova… E com vantagens inequívocas de minha parte: dos homens, fico apenas com o dinheiro e a companhia entre os lençóis, nunca pela casa, a enervar-me os dias…
Vi-o então empalidecer, chocado, mas prossegui:
_ Digo-te mais: logo dispenso os amigos que deixam de me convir, assim como ela também fará contigo caso hajas estupidamente…
_ Mas que queres que eu faça? Que seja corneado em minha própria casa, diante de meus amigos? Que permita à minha honra ser enxovalhada pela cidade? Que…
_ És demasiado dramático para alguém que deve tanto, Gaston – interrompi-o aos risos – Ninguém pretende que aceites tal degradação, a começar por tua própria esposa. O problema está nas vistas; faça tua mulher contê-lo nas aparências, exigir dele uma postura diante de ti e dos outros, e obter do pulha mais uns tantos benefícios por promessas insinuadas. A questão não é a transação, meu amigo, e sim os juros do negócio…
Ao vê-lo engasgar com uma resposta, sussurrei que apenas pensasse no assunto, enquanto ajoelhei-me e abri-lhe a braguilha, pronta a animá-lo…

Madame Bavard
junho de 1861
heterônimo de Leandro Ciccone

GRATIDÕES

Noite comum. Lixo arranjado para colocar na rua, defronte à casa; tantas vezes violado, aqui e nos vizinhos, em busca de latinhas ou outros recicláveis, num espalhar de sujeira que cobre as calçadas. Mesmo deixando para colocá-lo bem tarde, e separando os recicláveis num saco de cor diferente, e deixando alimentos vencidos e frutas passadas num saco à parte, nem sempre pude evitar essa imundície.

Pouco depois, retorno para ver a caixa de correio que havia esquecido, e um senhor que remexe no lixo agradece pelos alimentos sempre deixados; leva consigo o saco à parte em seu carrinho, desejando boa noite, enquanto volto impactado para dentro de casa.

Tantos por quem muito fiz na vida foram incapazes de agradecer. Tantos gestos e iniciativas generosas, sacrifícios de tempo, dinheiro, esforço, energia… Bem que se faz sem esperar recompensa, e que efetivamente acaba ignorado pelos que recebem; mas esse senhor é grato por um gesto mínimo de decência – nem generoso, nem pessoal. Impossível evitar uma sensação de embrulho na garganta, um desconforto físico pela iniquidade das circunstâncias, uma perturbação da alma pelo vazio da coexistência.

Maior é a gratitude daquele por quem se faz tão pouco do que dos tantos por quem tudo é feito. Miserável é o mundo em que a gratidão se torna apanágio dos que menos recebem.

Jaime de Campos

AGOSTO 2023

heterônimo de Leandro Ciccone

SINFONIA

Mais uma semana desgastante chega ao fim. Energias drenadas no choque diário com as insanidades (e mediocridades, e hostilidades, e falsidades) de um mundo cada vez mais sombrio. Hora do corpo e da mente exaustos se acomodarem na poltrona da sala de concertos. Uma vez mais.

A primeira peça do programa em nada resgata a paz de espírito. No palco, as dissonâncias de uma modernidade que se pretende inovadora sendo apenas inepta; na plateia, o cerco por aqueles que transformam um espaço de cultura num evento social. Nas poltronas à frente, uma mãe entediada no celular e uma criança que se remexe o tempo todo; nas poltronas atrás, um pseudoentendido sussurra comentários ao amigo a cada breve intervalo entre movimentos. A melhor companhia é a senhorinha que cochila silenciosamente na poltrona ao lado. Cenário infernal, mas felizmente raro – azares de uma assinatura com assentos flexíveis… A sinfonia depois do intervalo é o verdadeiro motivo da vinda, e por ela se tolera o desconforto.

E então o milagre orquestral acontece outra vez. A sinfonia de um mestre nas mãos do regente e de dezenas de músicos, a celebração de um talento de século e meio, de uma época em que música era arte, não discurso. O lirismo das cordas, a leveza dos sopros, a grandiloquência dos metais; as notas que se sucedem, os movimentos que se conectam, e o espírito que se eleva para muito além da mesquinhez do nosso tempo. Cadências que constroem massas sonoras, numa jornada de quase uma hora de sensações e experiências. Epifania de beleza num mundo ávido de aparências, celebração da grandeza de uma soma de talentos e capacidades – do passado, do presente, oxalá do futuro. E o corpo relaxa, a mente se desanuvia, e o espírito se revigora para os embates que logo hão de recomeçar.

Bendita herança de uma humanidade mais humana! Bendita arte que traz vida ao mundo! Que outros possam partilhar de teus mistérios…

Leandro Ciccone
maio de 2023

MOST LIKELY TO BE

Poucos ambientes são mais insalubres do que a competitividade doentia da high school americana. Incontáveis são os filmes e seriados que retratam seus protagonistas previsíveis e seus coadjuvantes melancólicos; destinam-se em sua maioria ao público juvenil planeta afora, mas também – de maneira talvez surpreendente – às suas próprias vítimas, de todas as idades, num masoquismo cômico-depressivo.

Nem nos cabe discutir as deficiências do sistema educacional americano, onde a mediocridade do ensino básico afunila as oportunidades do ensino superior (já em si quase inacessível à maioria por seus custos exorbitantes). A excelência acadêmica de suas universidades, contudo, abertas a estudantes com talento (ou com recursos) do mundo todo, preserva a hegemonia intelectual e científica dos EUA, mesmo que com pequena colaboração dos próprios cidadãos…

Nosso foco está no microcosmo de vaidades e estereótipos que parecem reproduzir-se por geração espontânea; o capitão do time e a chefe de torcida como os modelos de sucesso e de conduta para os nerds, os tímidos, os solitários e os estranhos de todos os matizes. Não causa espanto (numa realidade escolar onde os atletas valem dúzias de vezes um aluno brilhante) que os resultados escolares sejam tão questionáveis. O que talvez surpreende seja a permanência por décadas dessa excrescência do american way of life dos anos 1950…

E igualmente nas surpresas da vida – cujas inversões, de tão constantes, nem deveriam mais surpreender: o capitão de carreira arruinada, a chefe de torcida grávida, o chefe delinquente preso ou morto… E o nerd desprezado “fazendo um milhão por ano”, como todo americano sonha poder contar numa garden party de subúrbio… Disfuncionalidade dupla, portanto. Os bem-sucedidos da juventude como adultos fracassados, e os adultos de sucesso como aqueles capazes de compensar em riqueza sua carência de sociabilidade na juventude.

Nenhuma outra sociedade produz tantos suicídios e ataques homicidas entre jovens quanto os EUA. O preço dessa compreensão infantilizada da vida em choque com a realidade é demasiado alto, mesmo para o país mais rico do mundo. Nos anuários estudantis, o most likely to be associado a cada foto raramente repercute no futuro de cada um – afinal, trata-se de perspectivas construídas sobre personagens, não indivíduos. Por irônico que possa parecer, é a ausência de individualismo (no sentido de construção da própria identidade) que assombra a sociedade mais individualista do planeta. Como já dizia Tolstoi, as famílias ricas (ao contrário das mais pobres) são infelizes cada uma à sua maneira…

Leandro Ciccone
fevereiro de 2023

À DISTÂNCIA

Caminhada matinal para o trabalho. Mente alheia ao passos, seguindo o curso de pensamentos nem sempre lineares… Pequenos incômodos variando com as estações; o calor transpirante, o vento frio cortante, a chuva insistente. Atenção despertada pelos elementos repetidos. A senhora que abre a banca de jornal todos os dias, à mesma hora. O garçom que varre a área das mesas em frente ao restaurante, e logo passa a cumprimentar com um aceno de cabeça. O garoto de uniforme e mochila a caminho da escola, sempre com os fones de ouvido.

E o mais notável de todos. O homem sentado diante da biblioteca pública, sempre no mesmo banco, sempre lendo. Identificação inevitável; solitários sempre se reconhecem. E não só pelo ato de ler: também pela concentração na leitura, a abstração do mundo ao redor.

Ganas de sentar ao lado, falar sobre livros. Solitários sempre buscam (sempre anseiam) por almas afins. Mas a timidez constrangida prevalece, e segue prevalecendo. Num dia, porém, a capa do livro que o homem do banco lê enfim aparece – um autoajuda best-seller. As conversas imaginadas esboroam, os autores partilhados evanescem. Sigo o caminho cabisbaixo, frustrado como que diante de uma ofensa gratuita; a afinidade não resistiu à redução da distância.

Jaime de Campos
janeiro de 2023
(heterônimo de Leandro Gonsales Ciccone)

ACERTO DE CONTAS

Homem forte avança sozinho em bairro perigoso até um botequim. A plenos pulmões, convoca o chefão do crime no lugar para vir com ele até a rua; chefão acha graça, mas atende (seguido por capangas).

__ Você é o Galego? – pergunta o homem, fisionomia transtornada.
__ E você quem é? – o traficante ainda parece divertir-se.
__ Sou o pai do Diego, o menino que você matou semana passada.
Um dos capangas murmura algo no ouvido de Galego.
__ Parece que o seu filho morreu de overdose, cidadão. Uma fatalidade…
__ Deixe de cinismo, seu canalha – um capanga se move contra ele, o chefão o retém – Meu filho era bom, honesto, esse lixo que você vende destruiu a vida dele…
__ Vamos esclarecer, cidadão. Seu filho era um drogado, um fracassado; se eu não vendesse, outro venderia. E há pais por aí que podem realmente me acusar de assassinato, mas não você; seu filho se matou sozinho.
__ A responsabilidade é sua, ainda que essa polícia corrupta não faça nada; vamos resolver nós dois.
Dois dos capangas riem alto, o chefão sorri.
__ Você não tem medo de vir até aqui me desafiar? E desarmado? Um gesto meu e você já estaria morto.
__ Sei que os bandidos tem honra, você não seria covarde em recusar-se a me enfrentar sozinho, como homem.

Tensão no entorno. Há silêncio em toda parte. Os capangas se entreolham, os fregueses do bar voltam para dentro. Aquilo não era mais engraçado.
Galego então sinaliza ao capangas, que partem para cima do homem. Mesmo forte, não pôde dar conta dos cinco; foi surrado por quase meia hora, aos socos e pontapés, até não ser mais capaz de mexer-se. Um dos capangas ergueu-lhe a cabeça, olhos roxos, rosto inchado, sangue escorrendo do nariz e da boca em profusão. Sem se aproximar, o traficante lhe disse:
__ Não sei em que filme você viu essa bobagem, mas aqui os chefes não sujam as mãos.
__ Covarde – grita-lhe o homem semimorto, sendo então espancado por mais um minuto ou dois. E Galego retruca:
__ Se fosse covarde, não permitiria que meus homens o espancassem em plena rua, nem permitiria que você voltasse vivo para casa; mas não me representa perigo algum.

E, virando as costas, retornou ao botequim, enquanto o homem estertorava junto ao meio fio.

Otávio de Alencar
março de 2022
(heterônimo de Leandro Gonsales Ciccone)

HORA DE DORMIR

Jantar em casa de amigos. Conhecidos de anos, da época de colégio, todos já um tanto grisalhos. Seis pessoas ao todo, além dos filhos pequenos dos donos da casa, gêmeos sugestivamente chamados Remo e Rômulo. Em meio aos preparativos da refeição – risoto, carne assada, vinho – as conversas e risos já foram interrompidas pelas brigas entre os garotos. Vestido com uniforme de escoteiro, Rômulo construía prédios de Lego que ocupavam toda a sala de visitas – prédios que o irmão Remo, vestido com macacão e boné, tentava ocupar a todo instante com seus bonequinhos. Quando fracassava,
Remo destruía as construções do irmão, e os dois se engalfinhavam a socos e pontapés. A mãe já começava a se irritar, enquanto os convidados se entreolhavam. Depois de uma conversa no quarto com o pai, os dois voltaram emburrados, e assim permaneceram quase até o final do jantar – sentados em lados opostos da mesa, claro.

Então sobreveio o caos. À hora do café e da sobremesa, um dos amigos começou uma discussão política, e os garotos intervieram, furiosos. Remo ergue os punhos indignado para o irmão, um egoísta que não divide seus brinquedos e roupas com as crianças pobres, e ainda ganha mesada. Rômulo se altera, diz que a responsabilidade é dos pais das crianças, que não tem culpa de ter brinquedos, e que ganha mesada por cumprir as tarefas combinadas com os pais. Zomba então do irmão, que não ganha nada por ser preguiçoso, sequer arrumava a própria cama – e só dava os brinquedos quebrados e as roupas cafonas para as crianças pobres… Aos gritos de “mentiroso, opressor, porco capitalista”, Remo voou sobre o irmão, que retrucou aos berros de “vadio, hipócrita, socialista de merda”… Os pais tiveram trabalho em separá-los, em meio ao constrangimento das visitas.

Pais levam-nos para o quarto e os põem para dormir. Remo, de pijama vermelho, adormece dizendo “aí a gente faz a revolução…” enquanto Rômulo, de pijama verde-oliva, resmunga entre bocejos “aí a gente faz uma cruzada…”. Mas dormem logo. E os pais enfim retornam à sala, desculpando-se e perguntando aos amigos (que, sabiamente, não haviam trazido seus filhos) “onde estávamos mesmo?”.

MORAL: conversa séria de adultos só é possível depois que as crianças vão para a cama; isso vale em qualquer idade.

Juan Carlos Alargón
fevereiro de 2022


(heterônimo de Leandro Gonsales Ciccone)

NO ALPENDRE

Entardecia.
O homem que retornava do campo chegou à pequena casa. O cachorro veio recebê-lo feliz, e a voz da mulher avisou que a janta não demorava. Deixou a enxada e o chapéu no barracão e, dobrando as mangas da camisa, lavou o rosto e as mãos na água fria da bica. Molhou os cabelos e a nuca, respingando no cachorro que pulava junto de si.


Sentou-se então nos degraus do alpendre, com a calça de brim e a camisa suja de terra, batendo o barro das botas enquanto as descalçava. O cachorro veio deitar-se ao seu lado, e enquanto afagava-lhe a cabeça, deixou-se levar pela brisa úmida da noite que chegava, pela cantoria do passaredo no pomar, pelo ruído leve do monjolo na correnteza do riacho. Um cansaço de trabalho justo que lhe entorpecia o corpo, o cheiro bom da janta vindo do fogão de lenha, o sol que se punha pouco além do morro, a escuridão que pouco a pouco se fazia no mundo… Pensou na lida, na vida, em multidões de pequenas coisas, com as mãos acarinhando o companheiro fiel ao seu lado, que abanava o rabo junto às tábuas do alpendre e esperava por ele.


Quando a luz do candeeiro iluminou enfim a cozinha, respirou fundo o ar fresco da noite e,  chamando o cachorro, cruzou a soleira para a refeição e o repouso, beijando a mulher e enlaçando-a pela cintura, com seu boa-noite de voz grave quebrando o silêncio, agradecendo numa prece sem palavras mais um dia que terminava.

Leandro Gonsales Ciccone
fevereiro de 2022

O PIANO E O BANQUINHO

Vivemos tempos improváveis, sem dúvida. O discurso da modernidade brada pela mudança – vendo o novo como um valor em si – enquanto o conservadorismo clama pela imutabilidade da tradição. Discussão inviável, na verdade. A questão de fato – mudar o quê? para quê? – segue sem resposta.

Nessa imensa sala de concertos, orquestra e piano no palco, músicos de fraque, público em expectativa na plateia, eis que o banquinho do pianista é a peça central e inamovível. Se algo interferir na sonoridade, há que mover-se o piano – afinal, tem rodinhas, apesar de seus quase seiscentos quilos; há que mover-se a orquestra, apesar de seus noventa integrantes, das estantes, dos contrabaixos e tubas; há que mover-se o público, num balé caótico de duas mil pessoas e uma fúria selvagem de poltronas arrancadas. Mas não se moverá o banquinho do pianista. Nem um milímetro sequer.

Esse banquinho inamovível ao qual todo o resto precisa sujeitar-se, eixo em torno do qual o mundo há de mover-se – por mais surreais que sejam tais sujeições e movimentos – chama-se dogma. Em seu assento se assentam todos os fanatismos, de cristãos a muçulmanos, de marxistas a neoliberais, de tiranos a veganos. Até quando seguiremos permitindo que a mais móvel das peças, que a menor parte do concerto, seja a pedra angular de nossos castelos de areia, é a dúvida atroz de nosso tempo. O triunfo do irracionalismo segue enraizando banquinhos e movendo pianos.

Leandro Gonsales Ciccone
fevereiro 2021