BILHETES

Livro comprado em sebo. Relativamente novo até. Leitor pudico, só escolhe exemplares sem rasuras nem grifos, sem dobras nem vincos. Sequer nomes de antigos donos. Usados sem mácula. Recepção febril da encomenda; excitação de novos volumes nas muitas estantes já repletas.
Aberto o pacote, na limpeza e verificação inicial, encontra-se então um bilhete entre as páginas. Poucas linhas. Numa caligrafia quase infantil, com nome pouco legível (talvez Valéria?), um agradecimento ao pai pelo empréstimo daquele livro. Nada mais. Um Querido Papai anônimo (e generoso). Uma menina – ou moça? ou mulher? – meiga ao ponto de incluir uma nota de gratidão no volume devolvido. Nota sem data, que ali permaneceu. Teria passado despercebida? Seria o livro resultado daqueles tristes espólios de herdeiros não-leitores? Ou seria a lembrança de uma filha perdida?
Depois de alguma hesitação, o bilhete em papel azul foi para o lixo. Mas cumprindo por uma última vez seu dever de memória.

Leandro Gonsales Ciccone
abril de 2020