À DISTÂNCIA

Caminhada matinal para o trabalho. Mente alheia ao passos, seguindo o curso de pensamentos nem sempre lineares… Pequenos incômodos variando com as estações; o calor transpirante, o vento frio cortante, a chuva insistente. Atenção despertada pelos elementos repetidos. A senhora que abre a banca de jornal todos os dias, à mesma hora. O garçom que varre a área das mesas em frente ao restaurante, e logo passa a cumprimentar com um aceno de cabeça. O garoto de uniforme e mochila a caminho da escola, sempre com os fones de ouvido.

E o mais notável de todos. O homem sentado diante da biblioteca pública, sempre no mesmo banco, sempre lendo. Identificação inevitável; solitários sempre se reconhecem. E não só pelo ato de ler: também pela concentração na leitura, a abstração do mundo ao redor.

Ganas de sentar ao lado, falar sobre livros. Solitários sempre buscam (sempre anseiam) por almas afins. Mas a timidez constrangida prevalece, e segue prevalecendo. Num dia, porém, a capa do livro que o homem do banco lê enfim aparece – um autoajuda best-seller. As conversas imaginadas esboroam, os autores partilhados evanescem. Sigo o caminho cabisbaixo, frustrado como que diante de uma ofensa gratuita; a afinidade não resistiu à redução da distância.

Jaime de Campos
janeiro de 2023
(heterônimo de Leandro Gonsales Ciccone)