O CARTEIRO E O POETA

Quem nas brumas da simplicidade se esconde

– o rústico, o simples, um mero carteiro

De súbito se depara com percepções desconhecidas

Reveladas a si ao passo que as entregas distribuía

.

E o pobre observava, extasiado,

O valor das palavras para a alma da mulher

– palavras que ele, enamorado, ia ardente a buscar

Na crença humilde de que, por elas, ela o pudesse querer

.

Um homem tão trivial – deveras mesmo comum

Com umas poucas palavras, bem dispostas, bem arranjadas

Enlevava, fascinava, entontecia

Com rima, sons que se repetem, ânsia que angustia

.

E o carteiro não compreendia…

.

Mas, defronte ao mar, eis que percebe

Do poeta amigo o valioso segredo

Na cadência das palavras, em seu ritmo e musicalidade

Os compassos da conquista – ei-los enfim!

.

O poeta, este vê (como ele) o mundo

Mas com olhos que não têm cor, nem se podem ver

Olhos que moram no íntimo, no mais profundo

Olhos que são luz, essência, o próprio ser

.

E o carteiro compreende enfim…

.

Pois estes olhos – os olhos d’alma – todos os têm

Têm-nos os poetas, os carteiros, os garis, os pregoeiros

Os taverneiros, os malandros – e mesmo os cegos!

.

Eis o poeta, que dos versos tira seu pão

E o carteiro, que das missivas obtém o seu

– e imperceptível troca entre eles se dá

.

O carteiro abre seus olhos d’alma

Contempla o mundo (enfim) como poesia

Capaz enfim de não só enxergar, mas ver,

Enquanto o poeta redescobre a si mesmo

Como mensageiro de insuspeitadas dimensões

Capaz de partilhar seu olhar, seu perceber.

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Cláudio de Lima

novembro de 2023

heterônimo de Leandro Ciccone

junho de 1996

PARA O NOVO ANO

Para o Novo Ano prometo dar-me a chance das pequenas coisas:

embalar-me com o canto dos pássaros e com o riso das crianças

inebriar-me com o perfume das flores e o sabor do pão quente

divagar em meio ao frescor das madrugadas

afundar os pés na areia e sentir a brisa do mar

passear pelo parque sob o sol da manhã

caminhar cantarolando debaixo da chuva

acompanhar atento um belo pôr do sol…

Prometo beber bons vinhos, ouvir boa música, ler bons livros

Prometo enfrentar aqueles desafios que se arrastam de ano para ano

– aquele curso, aquele conserto, aquela reforma, aquela viagem –

Prometo me encontrar mais com os amigos, curtir mais a família

conhecer pessoas novas, lugares novos, idéias novas,

arejar a mente e abrir o coração.

Prometo cumprir minhas próprias promessas…

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Para o Novo Ano prometo dar-me a chance das grandes coisas:

agradecer todos os dias pela vida que se renova

perdoar aqueles que buscam meu abraço

abraçar aqueles que amo – e amá-los mais a cada instante.

Prometo viver e fazer da vida algo sempre melhor.

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Leandro Ciccone

dezembro de 2006

ANIMA

O sangue se revolta.

Borbulha. Escurece.

Tinge-se de negro.

Flamejam os olhos

Dilatam-se as artérias

Altera-se o sutil equilíbrio

Entre razão e desvario.

Não há mais nada além do homem.

Não há mais nada além do sol.

Mais nada.

Quão difícil é aceitar tal realidade

(por Deus, quão difícil…).

Quantas divagações não produzimos

Quantas vacilações não superamos

Na insana tentativa de enfrentar

O nada.

Mas nada.

Que nada!

Há algo além do nada.

Além do nada há a vida…

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Juan Carlos Alargón

novembro de 2023

heterônimo de Leandro Ciccone

março de 1997

ALVORADA

Eis o sol que surge no pálido azul imenso

Rubra esfera fonte de luz intensa

E pela terra os homens se vão

Na serenidade silenciosa da manhã

.

Mas algo de novo sempre ressurge com a alvorada

– nem toda luz provém do sol abrasado

No coração desses homens apequenados

Crepita uma chama de Eternidade

.

Assim, ao renascer da criação

Ao ressurgir da consciência

À incerteza inevitável do pensar e do sentir

.

Perante os limites da percepção

Em meio à azáfama da existência

Despertam as possibilidades do porvir.

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Leandro Ciccone

novembro de 2023

FIAT LUX

Diz a Bíblia, no Gênesis, que no princípio tudo era trevas, até que Deus bradasse “Faça-se a luz” – e a luz se fez. Não pôde depois a ciência discordar da mitologia judaico-cristã, do relato associado a Moisés e à compilação dos textos do Pentateuco da época de Salomão (cerca de 1000 a.C.); afinal, o que mais seria o famoso Big Bang senão uma imensa explosão de luz fenomenal, que se expandiu para o impensável espaço infinito? Há que se reconhecer a verdade nesse ponto – não é sempre que fé e ciência conduzem ao mesmo lugar.

Torna-se deveras difícil buscar uma resposta razoável para a criação do nosso infinito, da origem última de todas as coisas. A mera busca nos deixa temerariamente próximos da tênue linha que separa conhecimento de insanidade. Ao raciocínio humano, é aventura imponderável aproximar-se assim do incompreensível; derradeiro trecho do penhasco, a contemplar o abismo que se abre diante de nós – e ao nada além. Seremos acaso capazes de lançar-nos conscientemente na escuridão? Teremos audácia o bastante para esse pequeno passo? À certeza reconfortante da fé dogmática, cuja razão irracional define-se pela crença, sobrepõe-se a dúvida racional da investigação científica, no limiar de irracionalidade de seus frágeis postulados. Desejo de compreensão ou vaidade intelectual?

Terá o homem consciência de sua condição infinitesimal diante do que o universo representa? Terá a ciência o discernimento para compreender o quão absurdo é transcender os limites do próprio pensamento? Terá a fé (ainda) a pretensão de impor seus dogmas como verdades? Não se trata de tentar lançar algo de luz na escuridão, mas de atirar-se ao abismo do incoercível. O cientista ou filósofo que ancora a gênese de suas ideias nessa famosa metáfora de explosão luminosa, apelando exclusivamente à sua razão, chega enfim à questão inescapável: e de onde veio o Big Bang? Qual a origem da origem? O alienista de Machado de Assis acabou por concluir ser ele mesmo o alienado…

Ultrapassar a fronteira de nossa própria fragilidade intelectual é um tipo requintado de autoflagelação. O pensamento nos torna humanos, mas por vezes nos condena ao retorno à mera condição de seres. Reconhecer os limites do intelecto, das certezas de fé e das teorias científicas, não nos apequena diante do universo; pelo contrário, presta um justo tributo à humildade de nossa insignificância. No mito bíblico, a Árvore do Conhecimento interditada a Adão e Eva era o limite do cognoscível; seria esse mais um ponto em que fé e ciência concordarão no futuro?

Jaime de Campos

novembro de 2023

heterônimo de Leandro Ciccone

março de 1997

ANGÚSTIA

Frágil alma que guardo em meu peito

A trepidar incerta nas tormentas da vida

A desesperar-se insone no leito

A despertar exangue nesse sofrer sem medida.

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Clamo ao Alto por amparo

Algum alívio na escuridão de meus dias

Algum afeto nesse mundo tão avaro

Uma voz generosa que me responda à agonia…

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Quando enfim, exausto, calei minha desdita

Um cicio suave afagou meus ouvidos:

__ Aqui estou; dize de que necessitas.

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E em chagas Te rogo, agora

Livra-me dessa dor – que me consome

Livra-me dessa febre – que me devora.

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Leandro Ciccone

janeiro de 2023

CORTESANIAS #1 – MORALIDADES

Amante entra-me casa adentro com arroubos homicidas. Aos gritos, assusta-me a criada, que foge para a cozinha. Ouço a barulheira do boudoir, e desço as escadas já irritada, encontrando-o na saleta, indo de um lado a outro em frente ao piano.
_ Veja que assim me gastas o tapete, homem! Que te amofina?
Rosto vermelho, expressão descomposta, ele responde ainda aos gritos:
_ Um pulha corteja-me a mulher às minhas vistas!
_ E gritas assim para que meus vizinhos o saibam?
Ao ouvir isso, estacou enfim, pondo os cabelos em desordem com as mãos agitadas, enquanto repetia, mais baixo, vários “pulhas” e “calhordas”.
_ Mas por que o permites? – perguntei quando vi que se acalmara um tanto.
_ Devo-lhe até o último ceitil – ele retrucou agoniado, sentando-se – Tenho com o canalha promissórias que não poderia pagar nem por milagre…
_ Oras, dívidas se pagam dum jeito, ora doutro; eu mesma pago assim meus débitos…
_ Mas tu és… – ele principiou agastado, mas logo se calou, enquanto eu me ria de seus pudores.
_ Ela também, meu caro, creias-me; só temos contratos diferentes; o dela celebrado em cartório, o meu na alcova… E com vantagens inequívocas de minha parte: dos homens, fico apenas com o dinheiro e a companhia entre os lençóis, nunca pela casa, a enervar-me os dias…
Vi-o então empalidecer, chocado, mas prossegui:
_ Digo-te mais: logo dispenso os amigos que deixam de me convir, assim como ela também fará contigo caso hajas estupidamente…
_ Mas que queres que eu faça? Que seja corneado em minha própria casa, diante de meus amigos? Que permita à minha honra ser enxovalhada pela cidade? Que…
_ És demasiado dramático para alguém que deve tanto, Gaston – interrompi-o aos risos – Ninguém pretende que aceites tal degradação, a começar por tua própria esposa. O problema está nas vistas; faça tua mulher contê-lo nas aparências, exigir dele uma postura diante de ti e dos outros, e obter do pulha mais uns tantos benefícios por promessas insinuadas. A questão não é a transação, meu amigo, e sim os juros do negócio…
Ao vê-lo engasgar com uma resposta, sussurrei que apenas pensasse no assunto, enquanto ajoelhei-me e abri-lhe a braguilha, pronta a animá-lo…

Madame Bavard
junho de 1861
heterônimo de Leandro Ciccone

COMPREENSÕES

No primeiro dia depois que partistes
Recriminei o sol que nascera radioso
Ousando brilhar num mundo em que já não vivias

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No segundo dia, recriminei os pássaros
Que se atreviam a celebrar uma vida que já não tinhas
No terceiro, as crianças risonhas,
Incapazes de conter sua felicidade inocente
Num tempo em que já não existias

.

E assim se sucederam os dias
Em recriminações a um mundo insensível
Cuja natureza, existência, consciência
Seguiam indiferentes à tua ausência.

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Então, no derradeiro dia, recriminei a mim mesmo
Por não ter recriminado nada nem ninguém
Por romper o luto com um pensamento alegre
Por seguir vivo sem você junto a mim

.

Mas então compreendi, enfim
Que estavas no sol, nos pássaros, em tudo
Porque nunca deixastes de estar em meu peito
Porque eram para ti cada sorriso e cada beleza
Porque segues comigo, e seguirás para sempre

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Leandro Ciccone
Novembro de 2023