ACEITAÇÕES

Quão difícil é enfim aceitar

Que nada permanece igual sob o sol

Nem o caminho, nem a companhia

Nem mesmo o próprio caminhante

.

Reconhecer a mutabilidade das pessoas

Entender a perecibilidade das coisas

Perceber a irracionalidade do mundo

Compreender a fragilidade do próprio eu

.

Resgatar a esperança no possível

Restaurar a confiança no provável

Retomar a crença no imponderável

.

Missão inumana dos homens:

Aceitar a incerteza de todas as coisas

Sem perder a beleza de todos os sonhos.

.

Leandro Ciccone

junho de 2023

VENIRE

Dói-me saber-te tão longe

Dói-me sentir-te tão perto

Dói-me levar-te em meu peito

Na certeza desse amor tão incerto

.

Dói-me a lembrança tão doce

Do olhar mais terno que me viste

Do carinho mais meigo que me deste

Ah, amor, que me faz tão triste…

.

Peço em prece uma palavra que me guie

E suplico por um sorriso que seja:

Quero ver-te diante de mim

.

Quero ter-te em meus braços enfim.

Eis tudo que pede e almeja

Esta alma estulta que clama – venire

Leandro Ciccone

dezembro de 1996

DAS CINZAS

Em meio a chamas iridescentes

Consome-se um ser velho e doente

Que agoniza à espera da bênção

Que lhe traga a ansiada redenção

.

E o povo, cercando-o, murmura

Palavras inaudíveis, repletas de doçura

Perante o triste desenlace que aguardava

Aquele a quem a turba tanto estimava

.

Mas eis que das cinzas assoma um vulto

Que toma corpo e se ergue resoluto

Em meio às brasas ainda ardentes

.

Um homem enfim novo e forte

Vencedor da dor e da morte

De olhar puro e resplendente.

Jaime de Campos

março 2024

heterônimo de Leandro Ciccone

dezembro 1993

TEMPORA

Sábio é emudecer perante o indizível.

Em lugar dos discursos infindáveis sobre angústias incompreendidas

Oferecer o silêncio austero da consciência transtornada

.

Tempos irracionais – e impessoais

Homens governados por forças outras

(nem pela mente, nem pelo coração)

Tempos dilacerados – e prepotentes

Homens imersos em pulsões e desejos

(irreais, logo insaciados)

.

Cadáveres de crenças e utopias inumanas

Carcaças de sonhos e intenções violadas

Podridão e vazio ao longo das sendas da vida

.

E o desafio de firmeza e vontade, energia e decisão

Impõem-se diante daqueles ainda em pé numa humanidade que rasteja:

Resgatar as coisas mais íntegras que ainda restem

Em meio ao caos das ruínas

(afetos, princípios, virtudes, propósitos)

.

Sempre há de restar muito (intacto, ou quase, ou com danos que seja)

Sob os escombros de um mundo improvável – mas nunca impossível.

.

Leandro Ciccone

março de 2024

HEAVEN FOR EVERYONE

This could be heaven

This could be heaven

This could be heaven

This could be heaven

This could be heaven for everyone

.

Haverá um céu para todos nós?

(pergunta Freddie, cuja resposta já se fez)

Cínico! Descarado!

Se não há, de onde cantas?

Se não há, para onde vamos?

.

Sim, há um céu para vós que sois obedientes

(responde o padre, com um sorriso inquisitorial)

Sim, há um céu para vós que sois generosos

(responde o pastor, cesto de coleta nas mãos)

Sim, há um céu para todas as ambições

(pensa o cientista, a olhar estrelas)

Sim, há um céu para todas as ilusões

(pensa a mística, embaralhando seu tarô)

.

Há, afinal, algum céu?

Nem que seja para todos, ou apenas para você,

Ou somente não para mim?

Há alguma transcendência, alguma metafísica,

Alguma certeza para além desse mundo incerto?

.

You know that

(this could be heaven for everyone)

Yes!

(this could be heaven for everyone)

.

Juan Carlos Alargón

março de 2024

heterônimo de Leandro Ciccone

julho de 1998

DECORUM

Contempla, guerreiro, do promontório do mundo

O campo de batalha que se estende diante de ti.

Exércitos que se enfileiram

Tropas que tomam posições de combate.

E aqui estás, só.

Um homem contra uma multidão

– e não há quem questione as razões de uma guerra tão desleal.

.

Que fazer?

Sentes já um pânico a tomar conta de ti

Um pavor incerto percorre as tuas veias

Um tremor incontido abala todo o teu corpo.

E tudo em ti agora são nervos, são músculos, e sangue

E um só bater descompassado.

A lâmina que tens na bainha, amigo,

Fere-te mais do que ao inimigo.

Inda assim, desembainhai!

Que te ergas diante de teus próprios olhos

Com a bravura que traz o destemor.

.

Bramindo, sedentos, aí vem os estandartes

– rubros do sangue de tantos outros

– rubros do sangue de tantos quantos

à sua passagem se ergueram.

E cá os espera, resoluto.

No teu pânico encontrastes a serenidade

Na tua solidão encontrastes a tua causa

A razão por que lutas, o moto pelo qual te bates.

Por essa causa que enfim levas no peito

Que não te apavores, nem recues, nem desertes.

.

Do promontório da tua vida contemplas, guerreiro

O desafio – e a morte – que se estendem diante de ti.

Um frêmito de decisão teu ser então percorre

Dulce et decorum est pro officium mori

.

Arthur Edward Collins

heterônimo de Leandro Ciccone

junho de 1997

INSONE

A noite vai alta.

Não há mais lua no céu. Nem estrelas.

E não há passos na rua.

Todos dormem. Todos sonham.

Mas eu cismo, acordado ainda.

Fecho os olhos e me vejo diante de ti

Mas sem poder te tocar

Sem poder te abraçar

Nem poder apoiar minha tristeza em teu ombro.

Não há ninguém diante de mim.

Nada, senão a lembrança da felicidade

Que um dia já tive.

.

E o sono que não chega.

Teimo, e sinto os olhos úmidos

– úmidos dum pranto que não chorei

– úmidos duma tristeza que não imaginava

(quando se ama, não se acredita em mais nada)

Ouço o eco de palavras que não disse

Ouço vozes que não quero compreender

Te amo. É tudo que sei.

Não quero nada mais que o teu amor

Não posso esperar mais

Não consigo esperar mais…

.

Mas não quero mais cismar insone

Quero apenas um sopro de paz

Deixa-me dormir, amor.

Cláudio de Lima

heterônimo de Leandro Ciccone

junho de 1997

INCERTEZA

Desafiemos, enfim, o mundo.

Entreguemo-nos à faina inglória

(infame, inútil, inacreditável

– incompreensível, mas inescapável)

De intervir no mundo.

Lutar contra o mundo.

Mudar o mundo.

.

Mas como, se nem mesmo sabemos

(nem mesmo temos uma leve noção que seja)

Aonde queremos chegar?

Afinal, que buscamos?

Um mundo feito para os homens?

Um mundo feito pelos homens?

Ou homens feitos para um mundo?

.

Dúvida, surpresa, espanto, perplexidade

(interrogação; exclamação)

.

Mas tudo era tão claro

Tudo parecia tão simples, tão lógico, tão razoável…

(reticências)

.

Infelizes daqueles que lutam contra o mundo

Pois não enfrentam o mundo, mas homens.

E o que fazem os homens?

Constroem o mundo…?!

(ponto final)

Juan Carlos Alargón

heterônimo de Leandro Ciccone

junho de 1998

O CARTEIRO E O POETA

Quem nas brumas da simplicidade se esconde

– o rústico, o simples, um mero carteiro

De súbito se depara com percepções desconhecidas

Reveladas a si ao passo que as entregas distribuía

.

E o pobre observava, extasiado,

O valor das palavras para a alma da mulher

– palavras que ele, enamorado, ia ardente a buscar

Na crença humilde de que, por elas, ela o pudesse querer

.

Um homem tão trivial – deveras mesmo comum

Com umas poucas palavras, bem dispostas, bem arranjadas

Enlevava, fascinava, entontecia

Com rima, sons que se repetem, ânsia que angustia

.

E o carteiro não compreendia…

.

Mas, defronte ao mar, eis que percebe

Do poeta amigo o valioso segredo

Na cadência das palavras, em seu ritmo e musicalidade

Os compassos da conquista – ei-los enfim!

.

O poeta, este vê (como ele) o mundo

Mas com olhos que não têm cor, nem se podem ver

Olhos que moram no íntimo, no mais profundo

Olhos que são luz, essência, o próprio ser

.

E o carteiro compreende enfim…

.

Pois estes olhos – os olhos d’alma – todos os têm

Têm-nos os poetas, os carteiros, os garis, os pregoeiros

Os taverneiros, os malandros – e mesmo os cegos!

.

Eis o poeta, que dos versos tira seu pão

E o carteiro, que das missivas obtém o seu

– e imperceptível troca entre eles se dá

.

O carteiro abre seus olhos d’alma

Contempla o mundo (enfim) como poesia

Capaz enfim de não só enxergar, mas ver,

Enquanto o poeta redescobre a si mesmo

Como mensageiro de insuspeitadas dimensões

Capaz de partilhar seu olhar, seu perceber.

.

Cláudio de Lima

novembro de 2023

heterônimo de Leandro Ciccone

junho de 1996

PARA O NOVO ANO

Para o Novo Ano prometo dar-me a chance das pequenas coisas:

embalar-me com o canto dos pássaros e com o riso das crianças

inebriar-me com o perfume das flores e o sabor do pão quente

divagar em meio ao frescor das madrugadas

afundar os pés na areia e sentir a brisa do mar

passear pelo parque sob o sol da manhã

caminhar cantarolando debaixo da chuva

acompanhar atento um belo pôr do sol…

Prometo beber bons vinhos, ouvir boa música, ler bons livros

Prometo enfrentar aqueles desafios que se arrastam de ano para ano

– aquele curso, aquele conserto, aquela reforma, aquela viagem –

Prometo me encontrar mais com os amigos, curtir mais a família

conhecer pessoas novas, lugares novos, idéias novas,

arejar a mente e abrir o coração.

Prometo cumprir minhas próprias promessas…

.

Para o Novo Ano prometo dar-me a chance das grandes coisas:

agradecer todos os dias pela vida que se renova

perdoar aqueles que buscam meu abraço

abraçar aqueles que amo – e amá-los mais a cada instante.

Prometo viver e fazer da vida algo sempre melhor.

.

Leandro Ciccone

dezembro de 2006