POSSIBILIDADES

Algo no teu olhar, no teu falar, no teu agir
Reteve minha atenção uma primeira vez.
Sorrisos à distância, palavras trocadas
Primeiras interações, primeiras seduções
– Proximidades

Amigos comuns, um almoço, um café
Encontros em bando, cinema, mesa de bar
Uma conversa mais longa, descobertas, olhares
Primeiros risos, primeiros planos
– Afinidades

Conversas constantes, presença recorrente
Jantares, confidências, desejos
Epifanias de espíritos afins
Primeiros toques, primeiros prazeres
– Intimidades

Risos só nossos, alheamento dos demais
Ânsia constante por nos vermos sós
Euforias de ardor e afeto
Primeiras angústias, primeiros ciúmes
– Cumplicidades

E então algo se quebrou
Desconfortos, incompreensões
Frustrações, indisponibilidades
Primeiros silêncios, primeiras negativas
– Saciedades

E veio um afastar-se sem retorno
Sem motivo, sem despedida
De cumprimentos corteses à distância
E de percepção de amigos constrangidos.
E do amor que era nosso
Que poderia ter sido todo teu
E continuou a ser só meu.

E a vontade de desistir de procurar
E o impulso de continuar a tentar…
Que venham outras, poucas, muitas.
Que se repitam as primeiras, mas não as últimas
De cada coisa, de cada momento
Até o dia em que a busca termina.

Cláudio de Lima
fevereiro de 2022
(heterônimo de Leandro Gonsales Ciccone)

HORA DE DORMIR

Jantar em casa de amigos. Conhecidos de anos, da época de colégio, todos já um tanto grisalhos. Seis pessoas ao todo, além dos filhos pequenos dos donos da casa, gêmeos sugestivamente chamados Remo e Rômulo. Em meio aos preparativos da refeição – risoto, carne assada, vinho – as conversas e risos já foram interrompidas pelas brigas entre os garotos. Vestido com uniforme de escoteiro, Rômulo construía prédios de Lego que ocupavam toda a sala de visitas – prédios que o irmão Remo, vestido com macacão e boné, tentava ocupar a todo instante com seus bonequinhos. Quando fracassava,
Remo destruía as construções do irmão, e os dois se engalfinhavam a socos e pontapés. A mãe já começava a se irritar, enquanto os convidados se entreolhavam. Depois de uma conversa no quarto com o pai, os dois voltaram emburrados, e assim permaneceram quase até o final do jantar – sentados em lados opostos da mesa, claro.

Então sobreveio o caos. À hora do café e da sobremesa, um dos amigos começou uma discussão política, e os garotos intervieram, furiosos. Remo ergue os punhos indignado para o irmão, um egoísta que não divide seus brinquedos e roupas com as crianças pobres, e ainda ganha mesada. Rômulo se altera, diz que a responsabilidade é dos pais das crianças, que não tem culpa de ter brinquedos, e que ganha mesada por cumprir as tarefas combinadas com os pais. Zomba então do irmão, que não ganha nada por ser preguiçoso, sequer arrumava a própria cama – e só dava os brinquedos quebrados e as roupas cafonas para as crianças pobres… Aos gritos de “mentiroso, opressor, porco capitalista”, Remo voou sobre o irmão, que retrucou aos berros de “vadio, hipócrita, socialista de merda”… Os pais tiveram trabalho em separá-los, em meio ao constrangimento das visitas.

Pais levam-nos para o quarto e os põem para dormir. Remo, de pijama vermelho, adormece dizendo “aí a gente faz a revolução…” enquanto Rômulo, de pijama verde-oliva, resmunga entre bocejos “aí a gente faz uma cruzada…”. Mas dormem logo. E os pais enfim retornam à sala, desculpando-se e perguntando aos amigos (que, sabiamente, não haviam trazido seus filhos) “onde estávamos mesmo?”.

MORAL: conversa séria de adultos só é possível depois que as crianças vão para a cama; isso vale em qualquer idade.

Juan Carlos Alargón
fevereiro de 2022


(heterônimo de Leandro Gonsales Ciccone)

VISITANTES

Depois de uma última oração, o homem ajeitou as flores sobre o jazigo da família e afastou-se com passos lentos. Caminhava entre os túmulos, distraído, observando de quando em quando as placas e fotos; cemitério antigo, com mortos por vezes já centenários, perdidos em alamedas desoladas, capelas arruinadas cobertas de musgo. Em nítido contraste, seguia em meio ao canto dos pássaros, à sombra ocasional das árvores frondosas, naquela tarde de sol.

Ao cruzar com uma das alamedas abandonadas, mais à frente percebeu enfim um rapaz. Sua expressão angustiada, a tremenda tristeza de seu semblante, logo lhe chamaram a atenção. Ainda que nada dissesse, sua voz ecoou-lhe na mente, pedindo que o seguisse. Logo compreendeu tudo, e o acompanhou.

Caminharam por entre lápides derrubadas e lajes rompidas pelas raízes de árvores há muito ressequidas; aqui e ali, um vaso de pedra em cacos, uma cruz tombada, uma placa ilegível. Então chegaram.

Era um túmulo antigo de décadas. O rapaz apoiou-se na lápide ainda inteiriça, sem a angústia anterior na expressão, e apontou com a mão a placa coberta por tempos de pó e abandono. Tirando o lenço do bolso, o homem limpou-a o melhor que pôde, e então leu os dizeres meio apagados. Era uma mensagem dos pais inconsoláveis para o filho morto, que tão jovem os antecedia no outro mundo. Na foto em moldura de porcelana, reconheceu o rapaz ao seu lado.

Fechou os olhos e viu, diante de si, os pais em visitas constantes, com muitas flores, ficando por horas diante do túmulo do filho – que permanecia ali ao lado, incapaz de comunicar-se ou fazer-se perceber. Viu os pais envelhecerem, rarearem as visitas, e enfim se ausentarem. Por anos, muitos anos já. Teriam morrido em outro lugar? Por que não estariam sepultados juntos?

Ao abrir os olhos, percebeu que o rapaz também não sabia. Fez por ele uma prece, pedindo que pais e filho pudessem enfim se reunir. Viu no rosto do rapaz um alívio de sua tristeza, e viu-o curvar a cabeça num gesto de gratidão. Deixou-o enfim, e dali a pouco cruzava o pórtico do cemitério rumo ao burburinho caótico da metrópole.

Numerosas vezes, dali por diante, o homem trouxe uma rosa para levar ao túmulo do rapaz solitário, mas nunca mais encontrou o caminho. Deixa sempre a rosa, com uma prece, na esquina da alameda abandonada onde se encontraram. Ao visitar os seus, não deixa de lembrar-se daquele que foi por tanto tempo esquecido.

Leandro Gonsales Ciccone
fevereiro 2022

NO ALPENDRE

Entardecia.
O homem que retornava do campo chegou à pequena casa. O cachorro veio recebê-lo feliz, e a voz da mulher avisou que a janta não demorava. Deixou a enxada e o chapéu no barracão e, dobrando as mangas da camisa, lavou o rosto e as mãos na água fria da bica. Molhou os cabelos e a nuca, respingando no cachorro que pulava junto de si.


Sentou-se então nos degraus do alpendre, com a calça de brim e a camisa suja de terra, batendo o barro das botas enquanto as descalçava. O cachorro veio deitar-se ao seu lado, e enquanto afagava-lhe a cabeça, deixou-se levar pela brisa úmida da noite que chegava, pela cantoria do passaredo no pomar, pelo ruído leve do monjolo na correnteza do riacho. Um cansaço de trabalho justo que lhe entorpecia o corpo, o cheiro bom da janta vindo do fogão de lenha, o sol que se punha pouco além do morro, a escuridão que pouco a pouco se fazia no mundo… Pensou na lida, na vida, em multidões de pequenas coisas, com as mãos acarinhando o companheiro fiel ao seu lado, que abanava o rabo junto às tábuas do alpendre e esperava por ele.


Quando a luz do candeeiro iluminou enfim a cozinha, respirou fundo o ar fresco da noite e,  chamando o cachorro, cruzou a soleira para a refeição e o repouso, beijando a mulher e enlaçando-a pela cintura, com seu boa-noite de voz grave quebrando o silêncio, agradecendo numa prece sem palavras mais um dia que terminava.

Leandro Gonsales Ciccone
fevereiro de 2022