VISITANTES

Depois de uma última oração, o homem ajeitou as flores sobre o jazigo da família e afastou-se com passos lentos. Caminhava entre os túmulos, distraído, observando de quando em quando as placas e fotos; cemitério antigo, com mortos por vezes já centenários, perdidos em alamedas desoladas, capelas arruinadas cobertas de musgo. Em nítido contraste, seguia em meio ao canto dos pássaros, à sombra ocasional das árvores frondosas, naquela tarde de sol.

Ao cruzar com uma das alamedas abandonadas, mais à frente percebeu enfim um rapaz. Sua expressão angustiada, a tremenda tristeza de seu semblante, logo lhe chamaram a atenção. Ainda que nada dissesse, sua voz ecoou-lhe na mente, pedindo que o seguisse. Logo compreendeu tudo, e o acompanhou.

Caminharam por entre lápides derrubadas e lajes rompidas pelas raízes de árvores há muito ressequidas; aqui e ali, um vaso de pedra em cacos, uma cruz tombada, uma placa ilegível. Então chegaram.

Era um túmulo antigo de décadas. O rapaz apoiou-se na lápide ainda inteiriça, sem a angústia anterior na expressão, e apontou com a mão a placa coberta por tempos de pó e abandono. Tirando o lenço do bolso, o homem limpou-a o melhor que pôde, e então leu os dizeres meio apagados. Era uma mensagem dos pais inconsoláveis para o filho morto, que tão jovem os antecedia no outro mundo. Na foto em moldura de porcelana, reconheceu o rapaz ao seu lado.

Fechou os olhos e viu, diante de si, os pais em visitas constantes, com muitas flores, ficando por horas diante do túmulo do filho – que permanecia ali ao lado, incapaz de comunicar-se ou fazer-se perceber. Viu os pais envelhecerem, rarearem as visitas, e enfim se ausentarem. Por anos, muitos anos já. Teriam morrido em outro lugar? Por que não estariam sepultados juntos?

Ao abrir os olhos, percebeu que o rapaz também não sabia. Fez por ele uma prece, pedindo que pais e filho pudessem enfim se reunir. Viu no rosto do rapaz um alívio de sua tristeza, e viu-o curvar a cabeça num gesto de gratidão. Deixou-o enfim, e dali a pouco cruzava o pórtico do cemitério rumo ao burburinho caótico da metrópole.

Numerosas vezes, dali por diante, o homem trouxe uma rosa para levar ao túmulo do rapaz solitário, mas nunca mais encontrou o caminho. Deixa sempre a rosa, com uma prece, na esquina da alameda abandonada onde se encontraram. Ao visitar os seus, não deixa de lembrar-se daquele que foi por tanto tempo esquecido.

Leandro Gonsales Ciccone
fevereiro 2022

ELEVADORES

Homem negro, ainda jovem, usando camiseta e bermuda, chega ao edifício de escritórios. Passa com uma credencial pelo acesso da portaria e segue direto para os elevadores. Pequeno grupo de pessoas, visitantes, aguardava. Chega o elevador social, os demais entram; quando o homem negro se prepara para entrar, uma mão o retém pelo ombro. Em voz baixa, o porteiro novo o adverte:

__ Você precisa esperar pelo de serviço.

Voltando-se para ele, e retendo o elevador com o braço, o homem negro pergunta:

__ Posso saber por quê?

Alguma hesitação. As pessoas dentro do elevador ainda aguardam, constrangidas:

__ Só os condôminos ou clientes usam o social – a resposta finalmente vem – Empregados e prestadores de serviço usam o outro.

__ Como pode ver, não estou carregando nada que atrapalhe os demais. Não há porque usar o elevador de serviço.

__ Não crie problema, por favor. Apenas aguarde o outro. São normas do edifício.

__ Quem determinou isso?

__ Não sei, rapaz. Sou novo aqui, e fui instruído assim. Estou só fazendo o meu trabalho. Por favor, libere esse elevador e espere o outro.

__ Por acaso o problema é o fato de que eu sou negro? Negros não podem usar o elevador social?

>>>

(o desfecho poderia ser esse)

Já havia tensão visível. O homem negro erguera a voz. As pessoas no elevador se agitavam, inquietas. O novo porteiro, ainda segurando o braço do rapaz, gaguejava:

__ De forma nenhuma… eu só… eu tenho instruções, não quero ser chamado a atenção no primeiro dia de trabalho… por favor…

__ Deixe que ele suba conosco e acabe com isso – uma senhora elegante interveio, falando diretamente ao porteiro.

Nova hesitação. Mas foi o homem negro quem respondeu:

__ Não se trata de deixar subir conosco, senhora; esse tipo de discriminação…

Uma moça bem vestida, com jaleco médico, entrava nesse momento e interveio, questionando o rapaz:

__ Ricardo, o que está havendo?

__ E quem é a senhora? – perguntou o porteiro, já um tanto descontrolado.

__ Sou a doutora Tainá, do consultório de pediatria no nono andar, e esse é meu sócio, doutor Ricardo. O que está havendo aqui?

__ O porteiro novo decidiu que eu não poderia subir pelo elevador social – Ricardo respondeu, enquanto o porteiro largava seu braço e, pálido, gaguejava desculpas:

__ Doutor, não tive intenção… eu não sabia… como ia saber?… eu só…

__ Como ia saber o quê? Que eu sou médico? Que eu sou condômino? Que eu sou o subsíndico? Só sabia que eu sou negro, certo?

Agora o porteiro tremia, lacrimejando e torcendo as mãos:

__ Doutor, não sou racista… isso foi um mal-entendido… me desculpe, por favor… jamais tive intenção…

__ Quero saber quem foi que o instruiu a fazer isso – se é que alguém o instruiu. Racismo é motivo suficiente para demissão, você sabe. Seu primeiro dia vai ser o último.

__ Médico ou não, agora é você quem está sendo prepotente – era a senhora elegante no elevador quem reagia.

__ E a senhora quem é? – Ricardo perguntou com irritação.

__ Doutora Inês, advogada – ela se apresentou – Trabalhista.

Entrementes, várias pessoas haviam chegado, muitas discutindo o caso entre si. Uma confusão de vozes se sobrepunha, enquanto o porteiro transpirava e Tainá, de braços cruzados, acompanhava com os olhos a conversa. O segurança da entrada, que se aproximara, hesitava, sem saber se devia fazer algo.

__  Isso está se tornando um circo – um senhor grisalho recém-chegado interveio – Ricardo, suba de uma vez e esfrie a cabeça. Depois você vai apresentar esse problema ao síndico e ao conselho, e nós tomaremos uma decisão. Uma advertência pode ser o suficiente, resolveremos isso mais tarde, mais calmos. Vá tomar um copo d’água, rapaz – disse ao porteiro – O espetáculo acabou, senhoras e senhores.

Ainda em meio a murmúrios, o elevador social finalmente subiu. Ricardo e Tainá subiram em seguida. Pelo elevador de serviço.

>>>

(também poderia ser esse)

__ Por acaso o problema é o fato de que eu sou negro? Negros não podem usar o elevador social?

Já havia tensão visível. O homem negro erguera a voz. As pessoas no elevador se agitavam, inquietas. O novo porteiro, agora segurando mais forte o braço do rapaz, ergueu a voz também:

__ Você está fazendo cena, moço. Libere logo esse elevador ou vou chamar o segurança.

Sem discutir mais, o homem negro liberou o elevador social e entrou no de serviço. Enquanto a porta se fechava, viu o segurança correndo na direção do novo porteiro.

__ Sandoval, o que você acha que está fazendo? – o segurança perguntou-lhe assustado.

__ Aquele rapaz escurinho estava querendo criar problemas, mas foi só falar mais alto que ele se pôs no lugar dele…

__ Idiota… aquele é o doutor Ricardo, médico do consultório do nono andar e subsíndico do edifício…

Num primeiro momento, Sandoval pensou tratar-se de piada. Mas logo empalideceu ao perceber que o outro falava sério:

__ Carlos, que faço agora? Ele vai me demitir! Vou subir e me desculpar…

Uma moça bem vestida, com jaleco médico, entrava nesse momento, e o segurança se dirigiu a ela:

__ Doutora Tainá, podemos lhe falar um minuto?

E resumiu rapidamente a ela o que ocorrera. Sócia de Ricardo no consultório, a moça balançava a cabeça, inconformada:

__ Nem vá falar com ele agora. Ele está se preparando para começar a atender os pacientes. Converse com ele mais tarde. Mas não crie esperanças. No lugar dele, eu não perdoaria uma palhaçada dessas.

Tainá subiu e, minutos depois, Ricardo cruzava com ela, saindo já trocado e de jaleco do banheiro do consultório. Antes mesmo de desejar bom dia, ela já falava, nervosa:

__ Que situação absurda aconteceu hoje, Ricardo. O segurança me contou quando cheguei. Inaceitável. Vocês vão dispensá-lo hoje mesmo, não?

__ Talvez não seja para tanto, Tainá… Vou expor o caso ao pessoal do conselho, ver o que eles pensam.

__ Vai deixar por isso mesmo? Sério isso? Esse racista maldito não pode trabalhar no nosso prédio. Como negros, não podemos aceitar uma coisa dessas…

Ricardo tocou-a no ombro, procurando fazê-la acalmar-se. Depois disse:

__ Todo racista é um frustrado; o maior castigo dele é sua própria vida medíocre. Daqui a pouco ele aparece se desculpando da maneira mais abjeta, se degradando diante daqueles que considera inferiores. Nada pode doer mais, não? Afinal, posso ter subido pelo elevador de serviço, mas continuo sendo o médico, e ele apenas o porteiro.

Tainá visivelmente discordava, mas não retrucou. A secretária acabara de entrar, e já atendia ao interfone. Chamou por Ricardo:

__ Doutor, bom dia. O porteiro está perguntando se pode subir e dar uma palavrinha com o senhor.

__ Diga-lhe que quando estiver disponível mando chamá-lo.

E, piscando um olho, disse baixinho para Tainá:

__ Talvez prolongar a agonia desse infeliz não seja uma má ideia…

Ela não respondeu. O primeiro paciente, trazido pela mãe, acabara de descer do elevador. Social.

>>>

(ou talvez esse)

__ Por acaso o problema é o fato de que eu sou negro? Negros não podem usar o elevador social?

Já havia tensão visível. O homem negro erguera a voz. As pessoas no elevador se agitavam, inquietas. O novo porteiro, agora segurando mais forte o braço do rapaz, ergueu a voz também:

__ Você está fazendo cena, moço. Libere logo esse elevador ou vou chamar o segurança.

Mas não foi preciso. O segurança já se aproximava. Ia dizer algo, mas o homem negro o calou com um olhar. De costas para ele, o novo porteiro não percebeu sua chegada.

__ Você tem certeza de que essa é a atitude correta a tomar?

__ Se você não se coloca no seu lugar, precisamos fazer isso – o porteiro respondeu, já gritando.

O homem negro então acenou com a cabeça ao segurança, perguntando:

__ Carlos, pode dizer ao novo porteiro quem sou eu?

__ Claro, doutor Ricardo – o segurança estava constrangido – Doutor Ricardo é médico, tem consultório no nono andar, e é subsíndico do edifício.

À medida que ouvia, o novo porteiro enfim soltou o braço de Ricardo e empalideceu. Enquanto o médico liberava o elevador, gaguejando, ele tentava justificar-se:

__ Doutor, não tive intenção… eu não sabia… como ia saber?… eu só…

__ A questão não é saber quem eu sou; mesmo que fosse só um entregador, sua atitude é inaceitável. Espero que entenda que isso vai custar o seu emprego.

Agora o porteiro tremia, lacrimejando e torcendo as mãos:

__ Doutor, não sou racista… isso foi um mal-entendido… me desculpe, por favor… jamais tive intenção…

Mas o médico cortou-lhe os lamentos com um gesto:

__ Se você não se coloca no seu lugar, precisamos fazer isso.

E diante do segurança e do porteiro quase aos prantos, com o semblante fechado, entrou então no elevador. De serviço.

>>>

(ou ainda esse)

__ Por acaso o problema é o fato de que eu sou negro? Negros não podem usar o elevador social?

Já havia tensão visível. O homem negro erguera a voz. As pessoas no elevador se agitavam, inquietas. O novo porteiro hesitou.

__ Vamos esclarecer isso então – disse o homem negro, mostrando sua credencial de condômino e sua identidade do conselho de medicina.

__ Doutor Ricardo, não tive intenção… eu não sabia… como ia saber?… eu só… – o porteiro agora gaguejava desculpas, largando seu braço.

__ A questão não é saber quem eu sou; mesmo que fosse só um entregador, sua atitude é inaceitável. Você agiu como um imbecil agora. Numa próxima vez, isso vai custar o seu emprego.

Cortando suas desculpas com um gesto, Ricardo enfim entrou no elevador. E subiu para o seu consultório, ainda a tempo de tomar sua ducha depois da academia e se vestir antes do primeiro paciente do dia.

Otávio de Alencar

outubro de 2020

heterônimo de

Leandro Gonsales Ciccone

PRIORIDADES

A moça desce à portaria para retirar a encomenda do aplicativo de comida. Ao redor, buzinas, panelas e gritos num volume ensurdecedor. O motoqueiro espera, capacete na mão. E o cumprimento da moça surpreende o rapaz. Gentileza rara em tempos de pandemia.
__ Boa noite, moça – sorri enquanto entrega o pedido, e agradece a gorjeta.
__ O que será essa barulheira toda? – pergunta meio sem jeito.
__ É o pessoal protestando contra e a favor do governo – ela responde – Já estão nisso há uns minutos.
__ Achei tinham descoberto a cura dessa doença e o pessoal estava comemorando…
E diante da hesitação dela:
__ Obrigado, senhora, boa noite.
Meneando a cabeça um tanto inconformado, o rapaz afastou-se, recolocando o capacete.
Com o pacote nas mãos, a moça foi até os elevadores. Ainda não conseguira pensar numa resposta.

Otávio de Alencar

março de 2020

(heterônimo de

Leandro Gonsales Ciccone)

O VELHO DA MONTANHA

Durante os anos críticos da infância e da juventude, o garoto ouvira prodígios sobre um sábio velhíssimo, que vivia inacessível no cume da grande montanha a leste da cidade. Em todas as discussões, o argumento definitivo era sempre a seu juízo; diante das maiores dificuldades, sempre se erguia a sua lembrança. Nunca era mencionado sem uma solenidade reverencial; mesmo os mais levianos e debochados constrangiam-se à sua simples evocação. Pairando naquele cume longínquo, cercado de neves perenes, fazia-se presente em remotas histórias – cujas míticas alegorias afastavam-se cada vez mais de qualquer realidade.

Desde muito pequeno, aquele velho lhe despertara a mais intensa curiosidade; crivava os pais de perguntas capciosas, que logo se propagaram pela cidade e fizeram dele uma espécie de pária – se vivia isolado, como sabiam se já não tinha morrido? Por que fora isolar-se dessa maneira? Como se alimentava naquele cume rochoso? Jamais tivera resposta a quaisquer de suas perguntas; limitavam-se todos a repetir provérbios e parábolas atribuídas ao ancião, apegando-se àquela consciência que parecia capaz de esclarecer as dúvidas mais cruéis. Crescendo, entrara a duvidar às claras, chegando a rir da ingenuidade dos adultos em crer naquilo que chamava de “uma fábula bisonha”. Sabia por instinto que muitos buscavam convencer-se a acreditar, ansiosos pelo conforto que aquela sabedoria longeva, íntegra e serena, incorporava às suas vidas atribuladas.

Foi então que a angústia, sinal inequívoco da maturidade, abrigou-se também em seu coração; evanescida a presunção adolescente da onipotência, sua fragilidade o torturava, e a consciência da solidão parecia capaz de enlouquecê-lo. Como decidir-se diante das múltiplas encruzilhadas que atravancavam seu caminho? Como descobrir o amor por sob as máscaras? Sentia o espírito ensombrecido, clamava por respostas – e por isso creu. Entendeu (ou aceitou?) a existência daquele velho como um farol em meio às tempestades; humildemente – ou tacitamente? – curvou-se à inexorável mesquinhez dos próprios dramas. Todavia, o lobo poderia apenas perder o pêlo, mas não o caráter. Mesmo crendo, a eterna dúvida forçava-o à prova dos nove – o espírito inquisitivo e pragmático recusava-se a fabular por si. Para romper as sombras angustiantes que toldavam sua alma inquieta, decidiu-se; pôs-se em marcha rumo à montanha. Dirigir-se-ia ao próprio Velho; só estaria em paz se pudesse responder enfim às questões que sempre o haviam perturbado. Sua fé vacilava; demandava ver e ouvir.

E já a caminhada até a montanha, passos cada vez menos firmes sob um sol ardente, instilou-lhe o desânimo. Abatido pela sede e pelo cansaço, várias vezes cogitou retornar; mas reconheceu que se retrocedesse, desistiria, e por isso seguiu adiante. No sopé da montanha, então, teve que cruzar um ribeiro tumultuoso com água bem acima da cintura, escorregando nos seixos, bracejando encharcado; não obstante, foi no frescor daquelas águas que saciou-se e refrescou-se antes de iniciar a subida.

E a jornada montanha acima desdobrou-se em perigos e chagas. Pisando em pedras soltas, firmando-se em reentrâncias rochosas, viu-se inúmeras vezes suspenso sobre o vazio, onde um passo em falso significaria a morte certa; ferido pelos espinheiros, tendo que abrir caminho em meio à mata fechada, foi castigado ainda pela chuva – que entretanto lavou-lhe os ferimentos, e mergulhou na lama suas pegadas, afastando-o da miragem do retorno. Enfim, nos últimos trechos da escalada, já afundando nas neves eternas, açoitado pelos ventos e pelo frio cortante, foi assaltado a todo instante pelo lúgubre sussurro da desistência – da jornada e de si mesmo. Contudo, a própria dor (insuportável) não lhe deixava a escolha de uma lenta agonia; impelia-o sempre adiante.

Exaurido, emaciado, galgou enfim os últimos metros, e deixou que sua vista se perdesse no horizonte sem fim. Chegara tão alto que a cidade ali embaixo tornara-se um mero aglomerado de pontos quase indistinguíveis; se as casas e os homens eram tão pequenos daquela perspectiva, que diria os seus problemas! Compreendeu de chofre a escolha do ancião; aquele distanciamento parecia colocar as coisas em sua verdadeira grandeza. Voltou-se então para a própria montanha. Num pequeno platô, erguia-se um simples casebre de madeira; diante da ermida, num degrau de pedra, o Velho esperava por ele.

Era como se há muito já o conhecesse; era exatamente como sempre o imaginara: pequeno, magro, com um rosto sulcado pelo tempo e emoldurado por longas e alvas barbas. Mas sua expressão era curiosa. Seus olhos muito vívidos pareciam capazes de devassar a alma, mas diziam pouco sobre si; seu semblante inspirava confiança, mas era de fato inescrutável. O Jovem permaneceu diante dele por algum tempo (minutos? horas?) em silêncio, esperando que o ancião o inquirisse; este, entretanto, também calava.

O Jovem hesitava. Uma vez ali, diante dele, era como se não fosse capaz de formular as questões a que se propusera ao iniciar a jornada. Fiapos de certezas antes tão claras, demandas prementes impostas pelas circunstâncias, tudo se confundia numa imprecisão de palavras. Turbou-se, exausto, emudecido; foi quando notou nos olhos do Velho que nenhuma pergunta lhe era necessária; um sorriso terno assomava-lhe aos lábios, e o moço sentiu que seu espírito se abrira, e que tudo fora dito. Esperou, então, febril, que o ancião falasse; reconfortado pela sua presença – pela sua própria existência – aguardava as palavras que elucidariam toda dúvida, dissipariam toda angústia, restaurariam a convicção em si e no mundo.

Mas o Velho nada disse. Seus olhos empalideceram ao entender o que o Jovem pretendia. E o moço sentiu-se assaltar por uma cólera indômita; a troco de quê então enfrentara tão duras provas? Que sábio era aquele de quem esperava apenas a Verdade, o raio de luz que lhe permitisse perscrutar os desvãos sombrios de sua vida – e que o lograva negaceando-lhe o verbo? Tudo esperava daquele encontro. Tudo aceitaria do senhor da montanha, parábolas, profecias, provérbios, ainda que obscuros; jamais, entretanto, o silêncio.

E o sorriso do ancião apagou-se, enquanto a respiração do moço estertorava. Revolveu-se-lhe o mais profundo do ser, lacerando-o até as lágrimas. Não era possível que depois de enfrentar o sol e a sede, o vento e a neve, esconjurar os próprios fantasmas, persistir além das próprias forças, movido apenas pela Vontade – inquebrantável, insuspeitada – não era possível que faria meia-volta imerso na mesma angústia, pleno apenas do próprio vazio… Mais uma vez, a ira e o orgulho o incendiaram, e mais uma vez deram lugar à súplica humilde.

Seus olhos encontraram-se então. E toda a expressão do Velho irradiava tamanha serenidade, que o moço já não pôde mais evitar compreender; no mais recôndito de si, entendeu enfim que todas as suas dúvidas de fato já estavam respondidas – da única maneira que poderiam estar, com a certeza mais plena que um homem pode pretender. Diante daquele semblante marcado pela compreensão, aceitou a inevitabilidade da dúvida, reconheceu como certos apenas os meios – como apoio apenas a Vontade. Abandonou para sempre a crença infantil nas potestades capazes de governar o destino dos homens – aliás, abandonou a própria idéia de destino. E se não existe nenhum rumo traçado, não pode haver qualquer resposta anterior ao caminho; inútil esperar convicções do futuro. Só se pode (deveras inutilmente) questionar os passos que já se converteram em pegadas.

E nenhuma palavra (por desnecessária) foi trocada entre os dois. Reclinando a cabeça sobre o peito numa reverência singela, dominado por essa imensa e profunda serenidade, o Jovem tornou seus passos para iniciar a jornada de volta.

Leandro Gonsales Ciccone

janeiro de 2010

CÉTICO

Nunca acreditei nessas bobagens de religião.

Sempre fui um ateu convicto. Minha única fé, digamos assim. Não fazia o menor sentido imaginar um ancião de barbas brancas, sentado numa nuvem, governando os destinos dos homens como quem brinca com bonecos. Desde pequeno, chocava minhas tias, solteironas beatas que chegaram a pensar que eu era um possuído… Para proverbial frustração daquelas harpias, o padre recusou-se a fazer um exorcismo – e olhe que elas se ofereceram para pagar a troca de todos os bancos da igreja… Quando garoto, ainda não tinha conhecimentos nem audácia suficiente para arrostar minha mãe, minha avó e essas tias malditas; fui forçado a fazer a tal catequese. Dois longos anos de suplício, tentativas de fuga, blasfêmias no sinal-da-cruz e uma versão picaresca do creio-em-deus-pai… No dia da primeira comunhão, missa solene, a velharada toda reunida na primeira fila, não tive dúvida: mastiguei a hóstia todinha – e de boca aberta. Foi um escândalo! Minha mãe sovou-me sem piedade, em meio às minhas gargalhadas.

Ainda tiveram a petulância de tentar me coagir à tal da crisma. Mas, com quinze anos, já era impossível deter minha crueldade adolescente; depois de fugir das duas primeiras aulas, na terceira tentativa – sob vigilância pessoal de minha mãe – interrompi o padre para lhe perguntar quantas vezes ele se masturbava por dia. Sob a algazarra de trinta pequenos pervertidos, fui expulso aos trambolhões por um velhote colérico, roxo de ódio, que excomungou a mim e aos meus descendentes com uma devoção muito católica. Dali por diante, minha mãe e suas comparsas desistiram – aliás, tiveram inclusive que mudar de igreja…

Livre, finalmente, pude me dedicar ao ateísmo sem peias. Sem muita disposição para o estudo, larguei o colégio e comecei a trabalhar. Acabei dono de uma loja de ferragens. E famoso. Todos os moleques debochados da vizinhança adoravam reunir-se no meu balcão, onde eu lhes pregava minha sã doutrina. Vez por outra apareciam concorrentes – uma freira jovenzinha fugiu aos prantos quando lhe perguntei se realmente não ia querer ter filhos, atender ao humaníssimo apelo da maternidade; um pastor falastrão ousou insinuar que eu seria filho do capeta (batedor de carteiras nenhum pode ofender minha mãe, eu lhe demonstrei com bons modos e um soco que lhe custou dois dentes). Esse meu apostolado juvenil reduziu-se somente depois de um episódio repulsivo. Numa madrugada, quatro desses garotos estavam espancando um mendigo na praça em frente à minha casa; não tive dúvidas; peguei um bom toco de madeira que sempre deixo atrás da porta e sovei-os com a delicadeza de quem expulsa os vendilhões do Templo. O episódio ficou famoso. Quiseram entrevistar-me para o jornal do bairro, ao mesmo tempo em que os pais dos garotos tentavam processar-me por agredi-los. Convidei esses pais para uma boa conversa com meus punhos, mas infelizmente não quiseram atender-me. E tudo piorou quando aquele mendigo alcagüete contou para a repórter que ele e mais oito jantavam todas as noites na minha casa. Tive que esgotar meu repertório de palavrões muitas vezes até que decidissem me deixar em paz.

Mas esse sossego durou pouco. Novos alcagüetes pipocavam a cada semana. Num dia, o velhinho abandonado pelos filhos foi dizer que eu comprava seus remédios todos os meses; noutro, dez ou doze meninos da favela embaixo do viaduto espalharam que eu lhes dera os livros e materiais para a escola. E quando a menina de dezesseis anos, mãe solteira, resolveu contar que eu lhe mandava fraldas e leite Ninho todas as semanas? Fui motivo de piada! Diziam que eu estava afrouxando minhas convicções, que ia enfim me converter, essas asneiras. Minha mãe veio dizer que se orgulhava de mim. Oras, para o inferno todos eles! Desde quando tinha que dar satisfações para alguém?

Pois numa manhã, quase na frente da loja, um moleque de uns dezoito anos encostou uma faca no estômago de uma velhinha que saía do banco com o dinheiro da aposentadoria. Apavorada, ela gritou, e o maldito rasgou-lhe o ventre. Enquanto dois taxistas socorriam a senhora, corri com uma chave inglesa atrás do desgraçado. Quase não o alcancei, mas afinal consegui; foi um golpe só, com canônica piedade, no alto da cabeça, e o canalha se esparramou pelo chão. Apoiei-me então num poste, senti uma dor fulminante no peito e caí sentado. O esforço da corrida tinha sido demais para mim. Eu estava morto.

Não sei dizer quanto tempo estive inconsciente. Quando dei por mim, estava no meu próprio velório. Mentiria se dissesse que aquilo não me impressionou; podia ver a mim mesmo ali deitado, rosto lívido, semblante agoniado (afinal, que terno era aquele? E principalmente QUE TERÇO ERA AQUELE EM MINHAS MÃOS?). Num instante tive a resposta; sentadas em fila, à minha direita – ou à direita do caixão, melhor dizendo – estavam minha mãe, minha avó e as malditas tias beatas… Cadelas! E o pior é que eu sequer podia protestar; tentei sacudi-las, puxar seus pés, mas qual o quê… Comecei então a prestar atenção nas conversas. Felizmente, a velhinha se salvara, mas o salafrário do ladrão também… Meu golpe não tinha sido forte o bastante… Ei, que história é essa de que eu era um bom homem, que tivera cuidado para não matar o bandido?… Conversa fiada, só não matei porque não pude, a intenção era essa… Como assim “um espírito cristão”? Eu? EU? Só se fosse um espírito de porco… Essa gente não respeita nem os mortos!

E o velório estava lotado. Não consigo entender o que tanta gente foi fazer ali. Desocupados! Todos cochichando pelos cantos, aproximando-se do caixão com reverência… Deixem disso, pessoal, vão para casa… Meninos estúpidos, parem de chorar! E foi então que o achincalhe supremo aconteceu: ali entrou um padre. UM PADRE! Com a batina e todos os ridículos paramentos. Era inacreditável! Enumerou bobagens por uns dez minutos, desfiando suas bazófias, e então – isso ainda me revolta só de lembrar – aspergiu água benta sobre meu corpo indefeso. ÁGUA BENTA! Se fosse benta mesmo, teria ricocheteado, fervido, qualquer coisa assim…

E lá foi o cortejo, a pé, rumo ao cemitério. Estranho que eu não conseguisse afastar-me daquela caixa de madeira onde aquilo que fora meu corpo sacolejava nos paralelepípedos. E sem que eu saiba explicar como, ao baixarem o esquife ao fundo da cova, vi-me ali dentro. Logo, coberto de terra, mergulhei na mais densa escuridão.

Então era aquilo? Ficaria ali? Aquela razão que definia minha identidade permanecera presa à matéria perecível? Ali estava o argumento que eu sempre buscara em minhas discussões! Não havia mais nada depois da morte! Apenas a escuridão eterna. Vazio e breu.

Comecei a perguntar-me então quanto tempo poderia durar aquele torpor sombrio. Não era um pesadelo. Estava de fato morto, e bem morto – mas continuava consciente de mim mesmo. Como era possível? E então eu senti – de que maneira? desconheço – senti que minhas carnes apodreciam. Uma miríade de vermes despontava de minha carcaça inútil, reiniciando o ciclo infindo da matéria que se renova. Mas e quando nada mais restasse daquele volume putrefato? O que seria de mim? Afinal, onde eu estava? O que estava havendo? Como podia estar ainda consciente? Não era possível que existisse um espírito! Por Deus…

POR DEUS? COMO ASSIM “POR DEUS”?

Juro pelo que quiserem que essas palavras brotaram involuntariamente em minha consciência. E no mesmo instante a escuridão desapareceu. Fui envolvido por uma luz cuja origem me é inexplicável. E, mesmo morto, vi-me preso das mesmas sandices que negara por toda a minha vida. Divisei um vulto – que tentei execrar com alguma blasfêmia simpática – mas não consegui falar-lhe. Era como se houvesse perdido para sempre aquelas expressões. Toda a angústia imediatamente anterior desaparecera, mas eu me recusava a aceitar aquelas pirotecnias post-mortem. Dali a pouco um ruflar de asas precederia um anjo? Ou meus pés encontrariam uma relva macia?… Quá, quá, quá! Terão de fazer muito melhor que isso! Não é porque estou morto – e em suas mãos – que vou conformar-me a essas pieguices…

O vulto continua diante de mim. Não vou falar-lhe até que ele fale comigo; não aceitarei suas explicações metafísicas. Simplesmente não acredito nelas. Minha atual situação não mudou minhas convicções. Nunca acreditei nessas bobagens de religião. E agora eu sei que mesmo depois da morte nós, ateus, não seremos respeitados. Decididamente, eles não desistem…

Leandro Gonsales Ciccone

setembro de 2009