Talvez a coisa mais difícil em amadurecer seja a perda da inocência. Coisas que um dia fizeram sentido, criaram inquietas expectativas, trouxeram ternas alegrias – coisas que se perderam nas lembranças de infância. Das noites de Natal aos dias de aniversário, do primeiro dia de férias aos desenhos animados das manhãs de sábado… Cada um de nós guarda consigo fragmentos dessas sensações; cheiros, músicas, imagens, objetos… Um bolinho foi o suficiente para que Proust começasse as mais de duas mil páginas de Em Busca do Tempo Perdido; a Sonata a Kreutzer de Beethoven foi o mote para uma das mais inspiradas pequenas novelas de Tolstoi. Um cheiro percebido de passagem na rua pode nos levar de volta à casa dos avós; a abertura do desenho favorito, revista no YouTube, desafiará por uns instantes a jornada do tempo…
No meu caso, a lembrança de infância está no final dos episódios de um seriado de televisão dos anos 1970; família grande e típica, os pequenos conflitos de praxe, as rusgas entre irmãos… Cada episódio terminava com a família deitada, desejando-se boa noite de suas camas: “boa noite, papai”; “boa noite, mamãe”; “boa noite, John Boy”; “boa noite, Mary Ellen”… Quando eu era bem pequeno, minha família fazia a mesma coisa. Deitado, de pijama, com um travesseiro de leõezinhos, gritava um “boa noite, Mary Ellen” aos meus pais, e recebia de volta um “boa noite, John Boy”. Uma espécie de ritual do adormecer. O sono vinha quase que imediatamente, leve, sem os problemas trazidos pelas calças compridas e os cabelos brancos. Aquele “boa noite, John Boy” me traz a memória imediata de sonhos que já perdi, de vozes que já não posso mais ouvir. Convencionamos chamar essas pequenas coisas de felicidade.
Noite dessas, depois de consumar a alegria dos adultos (numa daquelas sessões inspiradas que às vezes abençoam os mortais…), quando minha atual senhora se aninhou comigo para dormir, fui tomado de um estado de satisfação imensa, como havia muito não sentia. Por uns instantes, as agruras e angústias desapareceram; naquele abraço um tanto exausto, senti que o meu coração rejuvenescera vários anos. Peguei-me sorrindo, genuinamente feliz, e não pude resistir: beijei-lhe os cabelos, abracei-a um pouco mais, e murmurei em seu ouvido o meu “boa noite, Mary Ellen”.
Mas a resposta não foi o meu “boa noite, John Boy”. Quando ouvi o clique do abajur, já estava arrependido:
__ Quem é essa Mary Ellen ????
Nem me atrevi a tentar explicar. Apenas fechei os olhos, enquanto a memória se evanescia sob uma torrente de palavras já incompreensíveis. Devo ter cochilado; preciso esperar que ela volte a falar comigo para descobrir…
Otávio de Alencar
abril de 2011
(heterônimo de Leandro Ciccone)