APATIAS

Fila da padaria em tempos pandêmicos. Funcionário do balcão lateral surpreende-me, chamando minha atenção aos bolos em oferta do dia (imaginou que eu olhava para os bolos, enquanto na verdade olhava para o nada). Sorri, oferece, fala muito; mas não respondo, ainda alheio, agradecendo apenas pelo menear de cabeça, num sorriso formal imperceptível por debaixo da máscara. Chega enfim a minha vez na fila, e sou eu a cumprimentar sem resposta, sem receber um sorriso, em meio a monossílabos, sendo o mais alguma coisa? do final a frase mais longa. Ignorado também pelo caixa, que se limita ao obrigado mecânico, tenho então ganas de voltar e agradecer a simpatia do primeiro funcionário, desculpar-me pela casmurrice. Perdemos a poesia da delicadeza; esvaziamos os pequenos gestos do convívio. Seguimos como zumbis nesse mundo. Já fomos melhores, muito melhores…

Jaime de Campos
dezembro de 2020

heterônimo de Leandro Gonsales Ciccone

FINADOS

primeiro texto desse heterônimo a aparecer nas páginas do GRANCARUSO

Eis que a vida moderna nas grandes cidades aboliu velhos hábitos, suprimiu velhos ritos; em poucas dimensões isso se evidenciou tanto quanto na morte.

Não se morre mais em casa, em meio à família, num despedir-se entre murmúrios na sala ao lado, ao som das orações das irmandades ou das beatas da vizinhança; morre-se em leitos de hospital, muitas vezes sozinho – leitos logo liberados para um próximo paciente. Não mais se velam os mortos em casa, entre as coisas e pessoas conhecidas, nem se vê desconhecidos tirando chapéus à saída do corpo, ou à passagem do cortejo fúnebre – já se foram chapéus e cortejos. Tudo há de ser rápido, asséptico, alheio ao cotidiano; a morte é mantida distante da vida.

Não mais se erguem cruzes aos que morrem nas ruas ou estradas, nem se coloca mais uma vela junto de um cadáver anônimo, quintessência de uma piedade de outros tempos. Àquele que morre na rua, num mal súbito, num desastre (ou num homicídio), reserva-se o abandono, à espera da polícia; ou, ainda pior, a curiosidade mórbida, as fotos dos celulares, o morto como objeto, não indivíduo; ex-pessoa (talvez já enquanto estivesse vivo…).

Mas ainda temos o Dia de Finados. E temos ainda o grande movimento nos cemitérios, uma enorme quantidade de flores e velas, orações e cultos. Para muitos, ainda existe esse momento de relembrar aqueles que partiram, os entes queridos, os seus mortos. Não perdemos de todo a fixação (e a angústia) pela morte, que nos acompanha desde os primeiros sepultamentos paleolíticos; não perdemos de todo a ligação com os ancestrais, raiz das primeiras religiões.

Bom que seja assim. Numa época em que os laços entre os indivíduos tanto se esgarçaram, reconforta saber que ainda há aqueles para quem nem mesmo a morte leva ao esquecimento; lembrança e memória como instrumentos de eternidade.

Jaime de Campos
novembro de 2020
(heterônimo de Leandro Gonsales Ciccone)

WALTONS

Talvez a coisa mais difícil em amadurecer seja a perda da inocência. Coisas que um dia fizeram sentido, criaram inquietas expectativas, trouxeram ternas alegrias – coisas que se perderam nas lembranças de infância. Das noites de Natal aos dias de aniversário, do primeiro dia de férias aos desenhos animados das manhãs de sábado… Cada um de nós guarda consigo fragmentos dessas sensações; cheiros, músicas, imagens, objetos… Um bolinho foi o suficiente para que Proust começasse as mais de duas mil páginas de Em Busca do Tempo Perdido; a Sonata a Kreutzer de Beethoven foi o mote para uma das mais inspiradas pequenas novelas de Tolstoi. Um cheiro percebido de passagem na rua pode nos levar de volta à casa dos avós; a abertura do desenho favorito, revista no YouTube, desafiará por uns instantes a jornada do tempo…

No meu caso, a lembrança de infância está no final dos episódios de um seriado de televisão dos anos 1970; família grande e típica, os pequenos conflitos de praxe, as rusgas entre irmãos… Cada episódio terminava com a família deitada, desejando-se boa noite de suas camas: “boa noite, papai”; “boa noite, mamãe”; “boa noite, John Boy”; “boa noite, Mary Ellen”… Quando eu era bem pequeno, minha família fazia a mesma coisa. Deitado, de pijama, com um travesseiro de leõezinhos, gritava um “boa noite, Mary Ellen” aos meus pais, e recebia de volta um “boa noite, John Boy”. Uma espécie de ritual do adormecer. O sono vinha quase que imediatamente, leve, sem os problemas trazidos pelas calças compridas e os cabelos brancos. Aquele “boa noite, John Boy” me traz a memória imediata de sonhos que já perdi, de vozes que já não posso mais ouvir. Convencionamos chamar essas pequenas coisas de felicidade.

Noite dessas, depois de consumar a alegria dos adultos (numa daquelas sessões inspiradas que às vezes abençoam os mortais…), quando minha atual senhora se aninhou comigo para dormir, fui tomado de um estado de satisfação imensa, como havia muito não sentia. Por uns instantes, as agruras e angústias desapareceram; naquele abraço um tanto exausto, senti que o meu coração rejuvenescera vários anos. Peguei-me sorrindo, genuinamente feliz, e não pude resistir: beijei-lhe os cabelos, abracei-a um pouco mais, e murmurei em seu ouvido o meu “boa noite, Mary Ellen”.

Mas a resposta não foi o meu “boa noite, John Boy”. Quando ouvi o clique do abajur, já estava arrependido:

__ Quem é essa Mary Ellen ????

Nem me atrevi a tentar explicar. Apenas fechei os olhos, enquanto a memória se evanescia sob uma torrente de palavras já incompreensíveis. Devo ter cochilado; preciso esperar que ela volte a falar comigo para descobrir…

Otávio de Alencar

abril de 2011

(heterônimo de Leandro Ciccone)